TODO PONTO DE VISTA É A VISTA DE UM PONTO OU EM DEFESA DA IGUALDADE DE GÊNERO NO GOVERNO – Antonio Oneildo Ferreira

Já dizia Leonardo Boff que “todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é a sua visão do mundo”.1 O ponto de vista que alguém sustenta acerca dos diversos assuntos que lhe são desafiados a opinar está diretamente vinculado à posição que ele ou ela ocupa no campo social. Ponto de vista tem a ver com lugar de fala; e, se estamos posicionados em lugares diferentes, por suposto termos opiniões distintas a respeito das mesmas questões. Ao referirmo-nos a campo social, subjazem condicionantes como história de vida, experiências sociais, individuais e psicológicas relevantes e o modo de lidar com elas, a cultura, a religião e a tradição onde estamos imersos, a classe socioeconômica e a geração de onde provimos, que demarcam necessariamente nosso juízo. Não se é lícito cobrar neutralidade de alguém na medida em que a condição humana é hermenêutica: inarredavelmente, a interpretação recebe influxos da experiência. O fato de nenhuma opinião ser idêntica a outra pelo simples fato de nenhuma posição social ser inteiramente coincidente com outra é a razão da diferença e da divergência que compõem essencialmente o pluralismo das democracias modernas. A diferença e a divergência, todavia, não inviabilizam a comunicação intersubjetiva, pois, a partir de um pano de fundo compartilhado de significados, nos é alcançável a concórdia em meio à controvérsia. Mas, para que o consenso aconteça, é necessário que todos esses pontos de vista singulares sejam levados devidamente em conta.

Toda essa narrativa parece óbvia, até mesmo intuitiva. Não parece exceder o discurso quase consensual de apologia da diversidade. Nunca é demais relembrar, porém, que em diversos momentos somos convocados a repensar o papel que a diversidade efetivamente desempenha em nossas vidas, ou melhor, qual é o papel que lhe queremos reservar. Das várias polêmicas protagonizadas pelo governo interino do Presidente Michel Temer, colecionadas em menos de duas semanas, foi notável a nada desapercebida completa ausência de mulheres indicadas para os postos ministeriais. Foram 24 homens brancos conclamados a ocupar os ministérios. Tal situação não se repetia desde o governo Geisel, à época da ditadura militar. Comparativamente, o governo anterior recrutou, durante seus cinco anos e meio de duração, 18 mulheres dentre as 34 ministras nomeadas entre 1990 e 2015. A sociedade civil logo reagiu a esse quadro que parecia sintomático de um inescrutável machismo institucional. Mesmo a comunidade internacional recebeu com pessimismo a novidade: em relatório encomendado pela BBC Brasil ao Fórum Econômico Mundial, foi informado que o Brasil caiu da 85ª para a 107ª posição no ranking da igualdade de gênero em razão desse fato isolado, que igualou o país a outros 5 carentes de presença feminina na composição ministerial (quais sejam: Brunei, Hungria, Arábia Saudita, Paquistão e Eslováquia).

Temer prometera um “Ministério de Notáveis”, mas causou no mínimo assombro ao não incluir sequer uma mulher no seu seleto “rol de notáveis”. Afinal, não havia nenhuma mulher suficientemente competente para ocupar essas posições? Tratava-se de apenas uma coincidência que não mereceria maiores questionamentos? Ou, pelo contrário, a atitude do novo governo é uma comprovação cabal do quanto ainda temos de avançar rumo à igualdade de gênero, através da maior representatividade das mulheres na política? Em que medida isso é a sinalização, por parte do novo governo, de retrocessos conservadores no âmbito das políticas de igualdade e de promoção de direitos de minorias? Por que é importante que um ministério se aproxime da paridade de gênero?

De início, afirmo categoricamente: o argumento da meritocracia só poderia ser invocado por ingenuidade ou má-fé intelectual. Mais da metade da população brasileira é formada de mulheres, as quais são a maioria dentre a população com nível de instrução superior (taxa de 15,1%, contra 11,3% de homens, segundo o Censo 2010 do IBGE). Entre as mulheres ocupadas, 19,2% possuíam nível superior, contra 11,5% dos homens. Mesmo mais escolarizadas, o rendimento mensal médio das mulheres equivale a apenas 68% da renda mensal dos homens (valor bruto de R$ 1.587 para homens e de R$ 1.074 para mulheres).2 Segundo dados divulgados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 2009, os homens brasileiros ganham aproximadamente 30% a mais que as mulheres com mesma idade e mesmo grau de instrução e formação.3

Percebemos claramente que o truísmo da meritocracia apenas mascara a desigualdade de gênero no mercado de trabalho, enraizada tão somente no preconceito, porquanto o grau de especialização entre mulheres costuma ser mais elevado. Não há que se falar em falta de mérito. Devido aos ônus vinculados à maternidade (da gestação e da lactação), à imposição da dupla jornada de trabalho – doméstico e extradoméstico – e às discriminações que usualmente subestimam seu potencial de competência profissional, o mundo laboral ainda é uma contundente evidência da desigualdade de gênero experimentada pelas mulheres. Desigualdade essa que, quase automaticamente, é transposta à esfera da representação política. Embora constitua parcela majoritária do eleitorado (52,134%),4 o gênero feminino ocupa somente 9,94% das cadeiras da Câmara dos Deputados e 13,58% do Senado Federal – totalizando 10,37% em ambas as casas do Congresso Nacional. O fato de as mulheres estarem excluídas da política e subvalorizadas no mercado de trabalho se relaciona simplesmente à sua natural inaptidão para a liderança pública e para o trabalho remunerado? Há provas suficientes de que não. Pelo contrário, a mão de obra qualificada é fartamente feminina, e existe uma notória geração de intelectuais e lideranças mulheres. O argumento da meritocracia tende a abafar o quadro de exclusão perpetrado no espaço público sob o subterfúgio da falaciosa alegação da natural afinidade das mulheres com o espaço privado – com o cuidado da casa, do marido e dos filhos.

Nós não vivemos absortos em um estado de natureza de permanente competição. A antropologia hobbesiana, pessimista quanto à capacidade de alteridade, moralidade e solidariedade da espécie humana, é tão inverossímil quanto sua radical negação. A cultura pode nos ensinar a dirimirmos a controvérsia em meio ao pluralismo, à diferença e à divergência – características imanentes ao regime democrático. Pluralismo, diferença e divergência são o ponto de partida fundamental para a construção da democracia. Os debates democráticos na esfera pública pluralista são marcados pelo caráter deliberativo: não ingressamos nela com posições rigidamente fixas; antes, em virtude do diálogo construtivo, somos capazes de alterar nossas pré-concepções com base no aprendizado com o Outro. Por isso, um ponto de vista nunca é dado de uma vez por todas, visto que se trata de uma capacidade geral de agregar diferenças e divergências. E a construção do meu ponto de vista depende da convivência discursiva com os outros – diferentes e divergentes de mim.

Quando mulheres adentram os debates públicos, levam contribuições peculiares que, embora passíveis de concordância e endosso, só poderiam ser elaboradas e defendidas por elas próprias, haja vista serem fruto de sua experiência social enquanto mulher. Indubitavelmente, um ministério composto por uma adequada representatividade feminina estará disposto a gerar resultados mais justos e por si só mais legítimos. A legitimidade política pressupõe que os segmentos sociais relevantes sejam representados proporcionalmente, pois o processo de agregação de diferença e divergência pressupõe, por sua vez, participação direta dos grupos interessados na defesa de suas próprias demandas. Por meio do aumento da diversidade na composição do espaço público, as decisões políticas ganharão em qualidade: o aumento da diversidade permite o enriquecimento do processo político. Esse é o entendimento que justifica a cultura da ação afirmativa.

Mais além da afirmação de seu poder político, a presença das mulheres no governo encerra incontestável potencial transformativo. Através do reconhecimento de que mulheres são capazes de ocupar, com louvor e distinção, cargos de destaque na cúpula do governo, outras tantas mulheres podem ser tocadas por esse exemplo e se reconhecer enquanto aptas para a expressão política, eventualmente participando diretamente dos quadros da administração estatal. Um ministério em que vigora a paridade de gênero seria uma conquista inestimável para o processo emancipatório das mulheres em direção à esfera da política. Ao desprezar esse aspecto, o governo Temer perdeu uma ótima oportunidade de tentar minimizar a desconfiança, difundida entre os movimentos sociais, quanto ao seu compromisso com a igualdade social.

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1 – Conferir: BOFF, Leonardo. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1998, p. 9.

2 – Dados obtidos em: http://www.ibge.gov.br/apps/snig/v1/?loc=0&cat=&ind=4707. Acessado em 30/05/2016.

3 – Disponível em:http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/noticias/homens-recebem-salarios-30-maiores-que-as-mulheres-no-brasil/. Para conferir o relatório completo: http://idbdocs.iadb.org/wsdocs/getdocument.aspx?docnum=2208929

4 – Disponível em: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais-2014-resultado

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Antonio Oneildo

Antonio Oneildo Ferreira é advogado, diretor tesoureiro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.

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